17/03/2021

8. Fazenda Cataguá: os Araújo tomam posse [3/3]

Na segunda metade do século XIX, a fazenda Cataguá, na região de Bemposta, hoje um distrito do município de Três Rios/RJ, foi transformada em uma próspera empresa agrícola, expressão da economia capitalista baseada em exploração intensiva da terra e da mão-de-obra escravizada, organizada por proprietários herdeiros de terras resultantes da divisão de antigas sesmarias. 

Nesta fase, pertenceu a José Francisco dos Santos Werneck, um dos Werneck que, a partir da década de 1830, multiplicaram fazendas no vale do Rio Calçado, resultado do desmembramento da pioneira fazenda Bemposta, de 1805, e da fazenda Sant'Anna, nas cabeceiras deste rio, no interior da região de Anta, atual município de Sapucaia.

Partida para colheita de café, vale do Paraíba do Sul - Marc Ferrez, 1885 (detalhe)

 

"O modo como a maior parte dos grandes fazendeiros, se apropriavam dos recursos naturais da região refletia uma lógica econômica na qual os recursos do meio físico eram encarados como reservas ilimitadas de capital. Esta ideia de abundância destes mesmos recursos fazia com que fossem considerados desnecessários quaisquer esforços no sentido de preservar estes recursos. Por esta lógica, era mais lucrativo derrubar novas extensões de florestas primárias do que destinar tempo de trabalho para a recuperação ou preservação da fertilidade dos solos já utilizados na lavoura.  

(“Ouro, posseiros e fazendas de café. A ocupação e a degradação ambiental da região das Minas do Canta Gallo na província do Rio de Janeiro”, Mauro Leão Gomes, Tese-UFRRJ, 2014.)

No final do século XIX, a fazenda Cataguá passou às mãos de seu filho caçula José Augusto dos Santos Werneck, conhecido por Juca Werneck, que fez evidentes esforços para manter a lucratividade da fazenda Cataguá após a Abolição da Escravatura, em 1888. 

Em fins de 1892 e início de 1893, Juca Werneck publicou no jornal do jornal Gazeta de Petrópolis, de que era agente para a região, sequência de anúncios em que tentava estimular negócios para seu empreendimento.

Através deles, informava que a Fazenda de Cataguá (chamada também, no outro anúncio, de "Engenho de Serra do Cataguá") iria inaugurar um "grande armazém de mantimentos" em Bemposta. E, logo em seguida, avisava "aos Srs. construtores" que poderia "fornecer toda e qualquer madeira para construções de prédios, pontes, engenhos etc.".  

Esta campanha publicitária é uma evidente indicação de que a fazenda Cataguá passara a depender, além da produção agrícola, da exploração das matas dos morros em torno da sede da fazenda, fazendo vendas diretas das madeiras ali extraídas. Em 1900, espelhando também a decadência dos negócios, Juca Werneck foi nomeado subdelegado de Bemposta, que era à época o 6º. Distrito do município de Paraíba do Sul.

De qualquer modo, e apesar da enorme concorrência da produção de São Paulo, o café continuava a ser produzido na região, mas agora não mais por escravos e sim por colonos, o que, certamente, implicava em maiores custos. 

Ferrovias no início do séc. XX (em preto, a E. F. Leopoldina)

Em compensação, a fazenda Cataguá ganhou uma boa vantagem operacional em relação a outras da região: sua produção passou a ser escoada (para o Rio de Janeiro) através da E. F. Grão-Pará, utilizando a estação da Figueira, que até foi definida no anúncio como "endereço" da fazenda. 

Na prática, o café era levado em lombo de burros até o alto da serra do Cataguá, que fica no entorno da sede da fazenda, de onde as tropas desciam, pelo vale do Córrego Sujo, até a estação da Figueira, inaugurada em 1886 no ramal da ferrovia (o ramal foi extinto em 1947, devido às obras da represa do Morro Grande, vizinha a Areal), que, em seu trecho final, chegava a São José do (Vale do) Rio Preto. A estação, à margem do Rio Preto, perto da fazenda da Figueira, no local depois chamado Tristão Câmara (a partir de 1931), foi encoberta em 1950 pelas águas da represa do Morro Grande

Ainda antes do fim da escravidão, chegou à região a família Nonato de Araujo, vinda do Ceará, da pequena cidade de Granja, localizada entre Sobral e Camocim, no litoral noroeste do estado, próximo à divisa do Piauí. No início do século XX, a família, chefiada pelo pai Cesário, com a segunda esposa e os filhos dos dois casamentos (entre eles nosso Avô Miguel), assumiria a Fazenda Cataguá.

(*) A "família Nonato de Araujo" é citada como proprietária da Fazenda Cataguá no livro "Capítulos de História de Paraíba do Sul", de Pedro Gomes da Silva (pg. 139). O termo Nonato é sobrenome, embora costume ser usado como nome próprio. A origem do sobrenome vem de São Raimundo Nonato, nascido na Espanha em 1200, que, retirado do corpo da mãe já morta ("nonato" significa "não nascido"), coisa rara à época, é considerado padroeiro das parturientes e das parteiras.

Segundo lembranças de Raul, um de seus filhos, D. Nylza dizia que o avô vinha de uma família de "tropeiros" ou que trabalhava em tarefas do campo, talvez criação de gado, e que saíram do Ceará devido às difíceis condições provocadas pelas recorrentes secas. Há, realmente, registro de longas secas no Nordeste a época, com destaque para a de 1878, considerada a maior do século XIX, assunto da primeira reportagem fotográfica brasileira, com texto de José do Patrocínio e fotos do cearense J. A. Corrêa.  

Depois de anos de trabalho, nosso bisavô, Cesário Nonato de Araujo, avô de D. Nylza e pai de Avô Miguel, tornou-se o "feitor Araujo" da fazenda Cataguá. É citado assim no blog "Vale do Calçado" (nome do rio que corta a região), uma série de sete textos com informações históricas sobre a região, publicados por Pedro Vianna Born, cuja família adquiriu parte de outra fazenda dos Werneck.

Comparando com a pintura de Grimm (1886), note-se que a parte dos fundos do quadrilátero da senzala
fora substituída, conforme relatos da família, por um pomar.
A parte mais próxima à sede foi adaptada para residência do casal Hermínia e Miguel,
e local do nascimento de seus seis filhos, entre 1915 e 1923.
Com os cafezais reduzidos às partes mais planas, os morros ao fundo voltaram a se cobrir de vegetação.
Provavelmente a fotografia foi feita para ilustrar anúncio de venda da fazenda.

Avó Hermínia e Avô Miguel
Evidentemente, o "feitor Araújo" exerceu sua função, com ajuda dos filhos, por décadas... A família Araújo acabou assumindo a fazenda Cataguá e, enquanto moravam numa casa adaptada na antiga senzala da fazenda, o casal Avô Miguel e Avó Hermínia tiveram seus seis filhos: Alencar, Wandir, Jurandir (o Seu Cica), Nylza, Maria Aparecida (a Tia Cheda) e Hilda (a Tia Batuta). Saíram da Cataguá em 1930 (chegaram a Areal poucos dias antes do Natal, relembra Tia Batuta), enquanto outros membros da família Araújo permaneceram com a fazenda e com o armazém de Bemposta. 

Há, porém, um dado que surpreende aos que têm alguma memória dos primórdios desta história familiar... A versão circulante era de que os irmãos teriam comprado a fazenda e o armazém, e dividido entre eles. Porém, nos comentários à postagem Histórico da Fazenda Santarém, o autor do blog dá outra informação: "Após a morte de Juca [Werneck] em 1925 - e de sua esposa e prima Arlinda da fazenda da Harmonia pouco antes - e sem herdeiros, Cataguá, por força de usucapião, acabou ficando de posse do feitor Araújo".

A usucapião (do latim usucapio: "adquirir pelo uso") é uma forma originária de aquisição do direito de propriedade sobre um bem móvel ou imóvel em função de haver utilizado tal bem por determinado lapso temporal, contínua e incontestadamente, como se fosse o real proprietário desse bem. Usucapião é um modo de aquisição da propriedade e ou de qualquer direito real que se dá pela posse prolongada da coisa, de acordo com os requisitos legais, sendo também denominada de prescrição aquisitiva.

E por que não apareceram herdeiros, sobrinhos talvez?... Seria um sintoma de que não valia mais a pena?... Nos áureos tempos da riqueza dos "barões do café", a intensa disputa pela propriedade das fazendas até condicionava casamentos... Há vários casos de casamentos (forçados?...) de viúvas com cunhados, o que evitava que propriedades de fazendas passassem a outras famílias. Assumir a posse de uma terra em reconhecimento aos longos anos de trabalho, talvez faça mesmo mais sentido, talvez seja mais justo...  

Acontece que a partir da última década do século XIX o custo de uma fazenda no vale do Rio Paraíba do Sul passou, na prática, a ser maior do que o lucro... Com as terras degradadas, os morros desmatados, muitos fazendeiros investiram na criação de gado, mas algumas fazendas foram praticamente abandonadas. Ao assumir a Fazenda Cataguá, a família Araújo manteve a produção de café, continuando a exportar a produção pelo mesmo roteiro.

Visita à Fazenda Cataguá, 2003 - foto Guina Araujo Ramos
No terreiro de secar café, D. Nylza, Raul, Tia Batuta e Tio Cica.
Aos fundos da sede, a serra que a separa do vale do Córrego Sujo.

“Tio Cica conta que, da Fazenda Cataguá até a estação do ramal de São José do Rio Preto, através do vale do Córrego Sujo, gastava-se, em lombo de burro, cada um com duas sacas de 60 kg, quase um dia inteiro. E isso na década de 20 do século XX...” (Ramos, Guina Araújo. O Jogo do Resta Um. Guina&dita, Niterói, pg. 92)

Nos anos 1990 ainda havia cafezais na fazenda, como testemunhamos numa visita, mas a área da fazenda Cataguá havia sido dividida entre os herdeiros dos irmãos Araujo, que passaram a viver em sítios ou venderam suas partes. 

A sede da fazenda foi vendida (como aconteceu com outras fazendas da região) nos anos 1980 a "um diretor do Bradesco", que a recuperou, e fez alterações, como a substituição do pomar aos fundos por um gramado e piscina. Felizmente, com preocupações ecológicas, mandou replantar a mata nos morros do entorno, o que levou inclusive ao fechamento da estrada que a ligava ao Córrego Sujo. 

O armazém de Bemposta, reformado, continua com a família, a esta altura nas mãos de primos cada vez mais distantes...

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